domingo, 14 de outubro de 2012

O Crime do Restaurante Chinês

Pode alguém assassinar quatro pessoas em questão de minutos, confessar e ser absolvido duas vezes? Pode. Foi o que aconteceu em 1942, quando houve o desenlace de uma história iniciada quatro anos antes, em 2 de fevereiro de 1938, Quarta Feira de Cinzas. Na manhã daquele dia, o cozinheiro Pedro Adukas levantou a porta de aço do restaurante chinês, na rua Venceslau Brás, 13, no Centro da Capital, e encontrou quatro corpos estendidos pela casa. Acabara de descobrir um dos mais sangrentos e famosos latrocínios da crônica policial de São Paulo: O Crime do Restaurante Chinês.
Logo no salão, Pedro deu de cara com os cadáveres de dois colegas de serviço, os garçons José Kilikevicius e Severino Lindolpho Rocha, assassinados a porretadas. Alguns passos depois, encontrou o corpo de seu patrão Ho-Fong, também morto com um porrete. O cozinheiro chamou a polícia, e, antes dela chegar, ainda achou no andar superior do prédio o cadáver de Maria Akiau Fong, mulher de Ho. Ela fora esganada.
A arma utilizada na matança foi encontrada no quintal do restaurante: um caibro quase circular, medindo 71,4 centimetros de comprimento e pesando 1,23 quilos. As suspeitas iniciais recaíram sobre patrícios de Ho e Maria, funcionários e ex-funcionários. Um deles, Manoel Custódio Pinto, era garçom e o mais antigo empregado da casa. Foi ouvido várias vezes pelo delegado Pedro de Alcântara Carvalho de Oliveira, que presidiu o inquérito, e, no terceiro interrogatório, a 4 de março, mencionou o nome de Arias de Oliveira.
Novas técnicas - Arias trabalhara durante 16 dias como ajudante de cozinha e deixara o emprego na Sexta Feira de Carnaval. Era um dos funcionários autorizados a dormir no serviço, gozando ainda da simpatia do ex-patrão. Manoel revelou aos policiais que ouvira Ho dizer, na terça feira, que Arias pedira para ser readmitido.
Arias passou a ser o pincipal suspeito, até porque fornecera dados errados no cartório, dizendo ser de Franca e nascido em 1 de janeiro de 1912 para fugir do Serviço Militar. Foi preso em 11 de março, mas os policiais não falaram sobre o crime, pois era necessário preservá-lo para depois submetê-lo a 'perícia antropopsiquiátrica'. Pela primeira vez a polícia paulista lançava mão dessa nova técnica para esclarecer um delito.
Para auxiliá-lo nesta tarefa, o delegado Pedro de Alcântara chamou Ricardo Gumbleton Daunt (1894-1977), chefe do Serviço de Identificação, Edmur de Aguiar Whitaker (1909-1965), médico psiquiatra, Oscar Ribeiro de Godoy, médico antropólogo, e Pedro Moncau, médico endocrinologista. Arias foi interrogado e submetido a testes por três vezes. Os resultados indicaram ser ele o assassino. Arias continuou negando, até 19 de março quando resolveu confessar.
Em sua primeira confissão, Arias admitiu que estava no local, mas afirmou ser Manoel o responsável pelas mortes. Em seguida assumiu a culpa. Acrescentou que desde que viera de Franca, seis meses atrás, enfrentara sérias dificuldades. Chegara a passar fome e nas vezes em que se alimentara, fora graças a ajuda de amigos. Brincou o Carnaval no tablado armado na Praça do Patriarca, e no último dia, dançou até as 24 hs, final do baile. Foi até a casa de um amigo, na Rua Santo Antonio e pegou o paletó. Na volta cruzou a Praça da Sé, e na rua Venceslau Brás, avistou José e Severino na porta do restaurante. Ficou ali até a chegada dos patrões e pediu para dormir. Disse que a sua intenção era se alimentar, mas tinha vergonha de confessar isso. Tinha refletido sobre sua situação e decidiu roubar o dinheiro que havia no cofre. Foi até a cozinha, apanhou um pilão e golpeou o lituano Kilikevicius na cabeça, Severino se levantou esfregando os olhos e também foi assassinado.
Ouviu passos de tamanco e correu para o banheiro existente no fundo do corredor. O chinês passou com a toalha no pescoço e foi atacado por trás. Maria apareceu no topo da escada e foi perseguida até o quarto, Arias perguntou-lhe sobre as chaves do cofre e, como ela se negasse a dizer onde estavam, estrangulou-a. Depois revirou as gavetas do cômodo, nada encontrando. Desceu e tirou 30 mil réis do bolso de Ho. Foi até a cozinha, saciou a fome e levou para o quarto de despejo, o colchão em que havia dormido. Fez tudo isso sem acender as luzes. Fugiu para o seu quarto na rua Visconde de Parnaíba onde dormiu. Mais tarde, passou pelo restaurante chinês, mas foi impedido de entrar.
Paulo Lauro (1907-1983)
A prisão preventiva de Arias foi decretada em 21 de maio. Levado a julgamento em 31 de março de 1939, foi absolvido porque o juri considerou que fora forçado a confessar um crime que não cometera. Inconformado, o promotor público Raphael de Oliveira Pirajá (1903-1975) apelou ao Tribunal e este por meio da Primeira Vara, em acordão de 3 de junho de 1940 anulou a decisão do juri. O segundo julgamento teve inicio em 9 de setembro de 1940 e, mais uma vez, o advogado Paulo Lauro conseguiu a absolvição do acusado. Seguiu-se novo recurso do Ministério Público, mas a Segunda Câmara Criminal, a 27 de agosto de 1942 decidiu pala confirmação do julgamento anterior.
A decisão da justiça não foi unânime. O Desembargador Amorim Lima (Alexandre Delfino de Amorim Lima, 1896-1966), em voto vencido, concluiu: "Raramente um crime foi tão bem elucidado por conjunto harmônico de provas. Eis por que, com a maior convicção e paz de conciência, propugnei pela condenação desse terrivel facínora".

Da defesa para a Prefeitura

O prefeito eleito de São Paulo, Celso Pitta, do PPB, foi o segundo negro a ocupar o cargo. O primeiro foi o advogado Paulo Lauro, que conseguiu livrar Arias de Oliveira da cadeia por duas vezes. Lauro - que nasceu em 19 de novembro de 1907, em Descalvado, SP e morreu do coração em agosto de 1983, na Capital - defendeu nos tribunais a tese de que seu cliente, negro como ele, fôra vítima de racismo e obrigado a confessar um crime que não cometera.
As técnicas usadas pela polícia para identificar o autor do Crime do Restaurante Chinês deram sustentação aos argumentos de defesa. Arias serviu de cobaia para o delegado Pedro de Alcântara Oliveira, da Central de Polícia, que o submeteu a uma perícia antropopsiquiátrica realizada por uma comissão da qual participaram também o chefe do Serviço de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt, o psiquiatra Edmur de Aguiar Whitaker, o antropólogo Oscar Ribeiro de Godoy e o endocrinologista Pedro Moncau.
A comissão realizou três baterias de testes com o réu e o considerou culpado, tomando por base teorias em moda na época, muitas delas racistas - como a defendida pelo advogado italiano Cesare Lombroso, para quem traços fisionômicos indicam se o indivíduo tem ou não má índole. Também colheu as impressões de Arias, comparou-as aos sinais fotografados no rosto de Maria Akiau Fong e concluiu serem da mesma pessoa.
Arias não era um cliente fácil de ser defendido. Natural de Cravinhos, no Interior Paulista, onde nasceu em 10 de janeiro de 1917, ele já tinha cometido alguns delitos antes de se declarar culpado de quádruplo assassinato. Para não servir as Forças Armadas havia falsificado a identidade. Além disso trabalhou como salva vidas em São Vicente, onde acabou furtando colegas.
Paulo Lauro e Adhemar Pereira de Barros (1901-1969)
Ao conseguir a dupla absolvição de um réu com essa ficha. Paulo Lauro ganhou notoriedade junto as elites. Anos depois, em 29 de agosto de 1947, tomou posse como prefeito de São Paulo, indicado pelo então governador Adhemar de Barros. Exerceu o cargo até 3 de fevereiro de 1949. Aquela altura, o cliente que lhe rendera fama e respeito já havia sumido do mapa.

Renato Savarese e Wilson Cocchi, Matéria reproduzida parcialmente de Revista Já, 17/11/1996
As opiniões aqui espressas são de total responsabilidade dos autores

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